Do alto da torre da Catedral eu via tudo. A cada passo meio proibido, torre acima, sentia os anos lentamente ficando para trás, os pesos da História se desgarrando, as marcas do presente desaparecendo. Como num passe de mágica.
Quando cheguei lá em cima, já não eram mais os carros que ocupavam o largo à frente da igreja, pois diante de mim estavam as casas e sobrados coloniais que os governadores republicanos colocaram abaixo em busca de uma modernização destruidora. Nem eram os sapos de cimento que bocejam com suas bocas abertas sem água para jorrar que estavam no chafariz abandonado, mas o antigo pelourinho, onde escravos estavam amarrados pagando pelo pecado da busca pela liberdade. Olhando diretamente para baixo, a própria Catedral havia dado espaço à antiga Igreja Matriz, onde um colono certa vez entrou com sua espada na cintura e causou um alvoroço que chegou até ao Rei, em Portugal.
Um pouco para a esquerda, ali onde deveria haver uma escadaria, tinha uma ladeira onde nenhuma Maria Ortiz existiu e holandeses eram expulsos a tiros de roqueira. Um pouco mais à frente, negros que a Companhia de Jesus escravizava desciam outra ladeira até o Porto dos Padres para jogar as fezes católicas no Rio do Espírito Santo para serem levadas ao mar.
À frente do Colégio de Santiago, onde deveria estar a Praça João Clímaco, havia um grande pátio de terra onde famílias e mais famílias de indígenas se viam enganadas a rezar o terço para uma santa que não conheciam e eram obrigadas se batizar em nome de um deus em que não acreditavam.
Pisquei os olhos, sem acreditar. Tudo ali me era familiar, de certa forma, mas ao mesmo tempo diferente. Estudante de História, monitor de patrimônios históricos, fui conhecer realmente o centro de Vitória já na Universidade, mas como me especializava na colonização, sabia que nem tudo era como imaginávamos, saudoso, bonito. Mas História é História, e ela não se preocupa em ser bonita ou feia, atraente ou repugnante. Do alto da torre da Catedral, afinal era possível ver tudo.
Voltei a olhar para baixo e o tempo parecia avançar. O velho Colégio era agora um Palácio e em sua frente o Comandante das Armas Julião Leão, leal aos interesses portugueses, quebrava sua espada em um canhão, frustrado por não conseguir impedir o apoio à Dom Pedro e à independência do Brasil. Eu também vi o governo da nova Província sendo ocupado pelos mesmos antigos grupos de políticos monarquistas que dominavam a velha Capitania, acompanhando a falta de novidades que reinava na capital do Império.
Um pouco para a direita, vi os negros do Rosário escaparem sorrateiramente do Convento de São Francisco com a imagem de São Benedito, que o padre conventual se recusara a deixar os escravos e libertos carregarem em sua procissão. Ali onde deveria estar o Theatro Carlos Gomes estava o braço de mar que foi coberto de terra para a expansão de Vitória e por sobre esse braço de mar estava a ponte onde eles quase derrubaram o santo, na pressa, e depois da qual foram recebidos com fogos e festas por quem só queria ver a procissão continuar.
E em todo o meu redor eu via as obras dos portugueses, agora brasileiros, que continuavam sua luta para apagar a existência dos africanos, agora escravos, ao trazer imigrantes brancos para ocupar as terras que eram dos nativos, agora estrangeiros em sua própria terra. Mas também via como esses grupos continuaram a contribuir com a nossa História, deixando suas marcas, negociando por seus interesses, ignorando a sede dos brancos de se sentirem únicos em uma terra de muitos.
Voltei a piscar os olhos, já cansados. Finalmente voltei a descer os degraus da torre, sentindo mais uma vez os anos se aproximando, o presente me alcançando. Enquanto fazia o longo percurso até embaixo, pensei nos passados que vi. O que glorificamos e o que esquecemos. O que imaginamos e o que realmente existiu. Ao pisar no chão, vi os visitantes chegando. Celulares nas mãos, óculos escuros nas testas. Recebi-os, sorridente, e contei-lhes sobre a igreja, sua História, seus passados. Tendo vivido o que vivi, queria que eles soubessem ainda mais, que vissem nosso centro com outros olhos, críticos, mas impressionados. Levei-os até a porta, olhando para o largo e para a cidade à minha frente, apontei para o alto e disse: “Ali do alto da torre da Catedral, vocês poderiam ver muitas coisas…”
“A Catedral do Tempo” foi publicado no livro Escritos de Vitória, 37: Bairros de Vitória, da Academia Espírito-Santense de Letras em 2022, com apoio da Biblioteca Municipal Adelpho Poli Monjardim e da Prefeitura Municipal de Vitória.