
O chão de madeira rangeu ao primeiro passo. Era um rangido pesado, imponente. Um rangido histórico. Ao meu lado, estavam sacos de grãos, balaios de transporte, selas de cavalo, utensílios de uma cozinha improvisada. Foi então que eu ouvi alguém dizer: “Bem-vindo ao Museu do Tropeiro de Ibatiba”.
Ali em Ibatiba, na região do Caparaó, sul do Espírito Santo, eu passaria os próximos meses da minha vida a trabalho. Nada mais justo do que começar pelo começo, conhecendo sua História, suas origens. Estava dando o primeiro passo do nosso relacionamento para que eu e a cidade pudéssemos ser próximos, amigos, e nos dar bem. E deu tudo certo, mesmo. Como dizem os locais, “Ibatiba é o mundo”, ali não falta nada.
Avançando pelo museu, vi em uma de suas paredes uma longa capa escura e surrada que marcava bem o motivo daquele lugar: os tropeiros eram verdadeiros comerciantes aventureiros que por mais de cem anos transportaram alimentos e objetos entre diferentes povoações. Hoje, anualmente, celebram o seu legado histórico de manter aquelas comunidades interligadas por tanto tempo.
Da porta, era possível ver a rua que seguia até o local mais marcante de toda cidadezinha, a praça da igreja onde o povo se reúne para tudo. Ali, nos tempos que viriam, perdi incontáveis vezes no bingo da igreja que premiava os ganhadores com frangos assados. Nunca ganhei um sequer, mas sempre comia, porque minhas amigas sempre ganhavam um, o que me deixava com uma certa raiva, mas também aliviado por ter jantar de graça.
Mais pra frente, virando a rua e atravessando a BR-262, que corta a cidade no meio, sempre havia uma linda Ford Rural estacionada, próxima ao Monumento aos Tropeiros, que saúda quem vem pela rodovia para ficar ou para seguir em direção às Minas.
Antes de me mudar para o lado de lá, a Rural estava sempre no meu caminho até o Ifes, onde trabalhei por um tempo, como professor substituto. O Instituto, entretanto, nunca foi substituído no meu coração. Ele me marcou pelo seu impacto importante nas novas gerações de Ibatiba, dando a oportunidade para aqueles adolescentes estudarem na escola que tem os melhores resultados do estado.
Ali, aprendi que ainda existem estudantes que se veem obrigados a sair da escola para ajudar a família na colheita do café, mas que existe um time inteiro de educadores fazendo o possível para garantir que esses estudantes não percam a oportunidade de uma formação inigualável. Aprendi também que faz parte do ibatibense subir o Pico da Bandeira de vez em quando, principalmente quando o frio bate (e ele bate forte!), meio que pelo desafio, meio que para contar a história depois. Ali aprendi ainda como é bom observar os céus de perto, num dia em que um colega levou um telescópio profissional à noite para o gramado e alunos e professores se maravilharam vendo de perto os detalhes coloridos e sinuosos de Júpiter.
Saí de Ibatiba cedo demais, mas como dizem, Ibatiba nunca saiu de mim. Os amigos ainda estão por lá, e conversamos on-line. Os ex-alunos estão por todos os lugares, vivendo vidas que tenho orgulho de acompanhar.
Ainda tenho saudades dos frangos que nunca ganhei no bingo da igreja. Tenho saudades de sempre esbarrar com os conhecidos quando eu saía à rua para ir ao mercado, ou para comer em alguma lanchonete. Porque era aquela sensação de estar em casa, de ser acolhido. Isso Ibatiba sabe fazer como ninguém. Porque ali há um espacinho para qualquer um e todos. Ibatiba é, afinal, o mundo.
“Ibatiba – meu coração tropeiro” foi publicado no livro Memórias Capixabas, da Academia Espírito-Santense de Letras em 2022, com apoio da Biblioteca Municipal Adelpho Poli Monjardim e da Prefeitura Municipal de Vitória.