Um dia após o trágico incêndio que destruiu o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, sinto que ainda que é cedo para analisar o fato, mas algumas coisas precisam ser ditas.
Nas últimas 24 horas, vi nas redes sociais tanto imagens de postagens de um universitário com fortes ideais de esquerda quanto de diversas pessoas com uma mentalidade de direita, comemorando o fato: o primeiro por achar que o museu era um símbolo do imperialismo europeu; os demais por achar que o museu era um desperdício do dinheiro público. É importante notar, entretanto, que nenhum dos dois reflete, realmente, a opinião de partidos ou de movimentos políticos no Brasil.
São opiniões isoladas de pessoas mal informadas sobre a importância da preservação da História do Brasil, da América Latina, do mundo. Esse era, afinal, o museu mais antigo do país, fundado por D. João VI, rei de Portugal, e tendo acabado de completar 200 anos de história. Além disso, era considerado o maior museu de história natural da América Latina, com mais de 20 milhões de peças — mesmo que apenas cerca de 1% estivesse em exibição.
Ali, era possível encontrar um acervo diverso, do qual apenas 10% parece ter sobrevivido. Eram esqueletos de dinossauros, múmias e mais de 700 peças egípcias, uma grande coleção de arqueologia clássica (gregos, romanos e etruscos), utensílios produzidos por civilizações ameríndias (pré-colombianas), o gigantesco meteorito Bendegó, que pesava 5.260 kg, e o fóssil humano mais antigo encontrado no Brasil (Luzia, que teria 11.300 anos).
É preciso ter um raciocínio muito curto para não entender a importância de preservar tudo isso. Estamos falando da história da humanidade, da história de milhares de diferentes espécies de muitos lugares. Não há quem vá a Paris e não visite um museu qualquer (o Versailles, o Louvre…) e até mesmo quem vai a Nova York costuma visitar algum (O Museu de História Natural, o Metropolitan…). Lá, valorizamos essa preservação. Aqui, nem tanto.
Ligado à UFRJ, o museu tinha um papel acadêmico e era usado por pesquisadores de diversas áreas que desenvolviam suas teses a partir do acervo. Logo, ele não só preservava, como também era base para novos conhecimentos. Agora, provavelmente surgirão os trabalhos de reconstrução.
Em 2014, quando estive no Museu Nacional pela última vez, ele já parecia precisar de ajuda. Na época, o orçamento da União tinha incluído R$ 20 milhões para reformas por meio de emenda parlamentar, mas o valor não chegou a ser utilizado pelo Governo Federal. Isso, seguido de uma constante queda nos repasses anuais para o museu, que caíram para a metade nos últimos cinco anos (com especial menção a 2017) confirmam a sua condenação: abandonado pelo governo, se aproximava a cada dia de uma possível tragédia.
Porém, o abandono não foi só por parte do governo. Entre as matérias que surgiram hoje, está uma que diz que em 2017, mais brasileiros foram ao Museu do Louvre, em Paris, na França, do que no Museu Nacional, que estava ali, na capital carioca. Sem contar as passagens e a hospedagem, a entrada do Louvre é 10 €, enquanto a do nosso era apenas R$ 8,00. Como, então, isso aconteceu? Apesar de o número de visitantes indicar um crescimento anual, o que os jornais indicam é que o próprio descuido com o museu e a falta de uma revitalização de suas áreas de visitação dificultavam a aproximação com o público.
Quando o incêndio começou, apenas 4 vigilantes estavam lá. Os bombeiros, ao chegarem, não conseguiram usar os hidrantes, sem carga: tiveram que puxar do próprio lago que avizinha o museu. Outro detalhe: o museu não possuía alvará dos bombeiros para funcionar. O resultado dificilmente poderia ser outro .A questão tem resposta ampla. Não é uma mera questão de governo, nem só de verbas, ou de falta de sentimento de apropriação e preservação. É um conjunto. Um coquetel com consequências trágicas.
A tragédia anunciada, de um museu abandonado por seu governo e seu público, parece trazer, por outro lado, algum aprendizado.
Um aprendizado é que história e cultura, na verdade, custam pouco. O investimento para manutenção do Museu Nacional era menor que o valor gasto com a lavagem de carros oficiais, como indica um contrato da Câmara dos Deputados. Mais assustador ainda: um único deputado federal custa quatro vezes mais aos cofres públicos do que o museu custava anualmente (aproximadamente R$ 500 mil).
Outro aprendizado importante: alunos de museologia da UNIRIO começaram imediatamente uma campanha nas redes sociais para reunir fotos do museu e de seu acervo para preservar sua memória. Diante da perda gritante, há um mínimo suspiro apoiado pela tecnologia. Tendo criado o Projeto Spirito Sancto, que busca digitalizar e compartilhar documentos históricos do estado do Espírito Sancto, acredito e defendo que criar um acervo digital de fotos e vídeos do Museu Nacional é talvez o melhor caminho para “recompor” o acervo perdido. Não há valor para as peças que arderam no incêndio, é verdade, mas suas digitalizações são agora o mais próximo que temos delas.
Em dezembro de 2015, outro incêndio destruiu completamente o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Lá, havia algo bem diferente: com uma proposta moderna, todo o acervo do museu era digital. Apesar dos danos ao edifício e das perdas dos aparelhos, seu conteúdo pode ser 100% remontado. Seria impossível fazer isso com o Museu Nacional, mas certamente digitalizações de alta definição de peças, documentos e mais poderiam ajudar os novos trabalhos de reconstrução.
É difícil dizer isso, quando há tantas coisas mais simples que faltam para a manutenção de nossos museus, mas não seria a hora de investirmos ainda mais em tecnologia voltada para acervos históricos?
Eu acredito que sim.